O ano, 1938. O dia, 19 de Junho. O lugar, Ponta Delgada, São Miguel, Açores.
E assim foi que o meu pai, sendo sargento músico, era indicado para comparecer nos
concertos que a Banda Militar dava todos os Domingos no Quiosque do Campo de São
Francisco. Naquele dia, durante um desses concertos o tempo chegou e eu cheguei
com o tempo. Enquanto o meu pai contribuia com harmonia no concerto da banda eu
contribuia com a dissonancia dos choros no processo de nascimento. Eu, o segundo
filho de Laura e Alberto Chaves. O meu irmão Luís, tinha já nascido há pouco mais
de 4 anos e pela altura da minha chegada de bom gosto assumiu a responsabilidade
de ajudar a cuidar pelo novo bebé da casa.
Os meus pais, ambos Açorianos, tinham ascendência em pontos diferentes no arquipélago.
A minha mãe, Laura, nascida em 16 de Março de 1910, era oriunda da Vila do Nordeste
em São Miguel e descendente da família dos Barbosas.
O meu pai, Alberto, tinha nascido
a 17 de Fevereiro de 1907, na Ilha de Santa Maria onde as famílias Chaves eram
prevalentes. O facto de se terem conhecido é atribuído a um colega do meu pai que
por sua vez tinha casado com uma amiga da minha mãe. Esses conhecimentos deram
ocasião a que se encontrassem e por fim casaram-se em 14 de Julho de 1932, "Le Jour
de la Bastille", mas mais afamado na nossa casa como sendo o dia da comemoração do
casamento dos nossos pais.
Música tinha sido a razão que fez o meu pai deslocar-se para São Miguel mesmo ainda
bem jovem. A sua estratégica foi entrar como voluntário para o serviço militar e
continuar os estudos rudimentares em música que tinha adquirido em Santa Maria.
Rudimentares sem dúvida mas o suficiente para o fazer compreender que tinha habilidade
nessa arte. Entrando como voluntário no exército podia escolher a área militar preferida
e música não só foi a sua especialidade como também lhe deu direito a matricular-se
nas Escolas Regimentais, onde o programa educacional era equivalente aos primeiros
ciclos dos Liceus. Naquela altura, esse nível de ensino era significativo porque
escolas secundárias eram escassas. São Miguel, era a única ilha onde o Liceu de
Antero de Quental oferecia o terceiro ciclo ou "Curso Complementar" necessário
para admissão nas universidades.
A casa onde eu nasci ficava mesmo ao lado onde então morava a filha do ilustre
jornalista que deu o nome à rua onde estava situada. Era ela a Srª. Dª. Maria do
Carmo Tavares de Resende. No outro lado morava o não menos ilustre advogado,
Dr. Hugo da Silva, afamado não só pela sua perspicácia legal mas também pela
habilidade de réplicas rápidas e espontâneas na sua maior parte altamente humorísticas.
Por pura coincidência, mesmo em frente à casa dos meus pais morava a minha tia
Josefina, irmã da minha mãe e casada com Ernesto Franco de Medeiros. Ambos foram
os meus padrinhos do baptismo realizado na Igreja de S. José. O meu padrinho
Ernesto era o primeiro empregado da Farmácia da Associação de Socorros Mútuos,
e bem considerado na praça do comércio. A sua paciência e maneira serena de agir
eram características rapidamente notadas por todos os que com ele lidavam e o
conheciam.
Os meus padrinhos tinham dois filhos, Carlos, o mais velho e o Eduardo
dois anos mais velho do que eu e nascido a 10 de Junho, Dia da Raça ou de Camões.
Era sempre dia feriado e lembro-me de invejar essa regalia dele poder estar de
folga simplesmente gozando o dia dos seus anos. E assim me criei, cercado de
talentos e família que, pelo facto de me terem caído à porta, assim por dizer,
só mais tarde reconheci a imensidade da sua grandeza e significado do parentesco.
Por outro lado, a casa dos meus pais era constantemente infiltrada com os sons de
música, e eu, desde os tenros anos da minha vida também tinha notado uma certa
habilidade nessa arte. Aos 10 anos de idade ingressei no Liceu e pouco mais tarde,
como aluno de violino, na então recém estabelecida Academia Musical de Ponta Delgada.
O meu irmão Luís, por sua vez, já tinha entrado para o Liceu 3 anos antes de mim
e essa diferença de idades trazia consigo certas vantagens que tornavam a minha
vida relativamente mais fácil. Ele era o explorador do que eu mais tarde teria
de enfrentar. Na altura em que surgiam problemas podia sempre recorrer a ele e
beneficiar da sua experiência. E assim seguimos a nossa adolescência envolvidos
nos estudos que nos cercavam.
Na minha vida liceal fui aluno de notas médias, i.e., "Quadro de Honra" e "negativas"
ocasionais, mas longe do nível de outros contemporâneos como Luís de Oliveira Medeiros
e José Ângelo Vasconcelos de Paiva. Esses eram as estrelas por quem o resto de nós nos
guiávamos na esperança de pelo menos nos aproximar do seu círculo. Mas na minha vida
musical o meu progresso tornou-se rápido e com relativa brevidade comecei a ser convidado
para participar em vários grupos especificamente formados para preencherem os requisitos
musicais de diversos eventos sociais. E assim aconteceu que mais tarde fui apresentado
como o primeiro aluno da Academia Musical fazendo parte da Orquestra Sinfónica de
Ponta Delgada. Era esse um grupo misto de amadores e profissionais mas, para o meio,
fazer parte dele era considerado como uma relativa distinção para quem era amante e
conhecedor de boa música. Para mim era quase como que o impulso necessário para me
convencer de que música seria a minha carreira e matriculei-me como aluno externo do
Conservatório Nacional de Música em Lisboa.
Da mesma forma que eu tinha habilidade em música, Luís, o meu irmão mostrava o
mesmo no teatro. É pena que naqueles tempos não houvesse recursos locais especializados
no desenvolvimento desse campo artístico se bem que era evidente haver um núcleo
não só de amadores do palco mas autores que, não obstante essa deficiência,
mostravam grande talento na arte teatral. O meu irmão tinha esse talento e por
tal era convidado com frequência a tomar parte em récitas e outros programas
encenados na altura. Ainda bem me lembro dele representando o papel de escrivão
na famosa peça de Molière, "O Avarento", enquanto ameaçava o criado de Arpagão.
Em 1953, estando Luís no Teatro Micaelense à espera de começar o filme anunciado,
aconteceu que se sentaram ao lado dele duas senhoras falando Inglês, obviamente
Americanas. Ele, relativamente fluente naquela língua, mostrou-se logo prestável
no caso de necessitarem alguma tradução do que se passava, não obstante o filme
ser falado em Inglês e a senhora mais idosa, do mesmo modo obviamente oriunda de
São Miguel e por si própria fluente em Português. Mas claro, a questão essencial
era o facto da moça em questão ter umas certas parecenças com a então afamada
actriz Doris Day e três meses depois desse encontro Luís e Hilda se casariam nos
escritórios do Registo Civil da Vila da Ribeira Grande. Essa questão de se casarem
"à civil", como era então referida, foi coisa que deu que falar nos círculos
sociais de Ponta Delgada. Os meus pais, e em especial a minha mãe, eram conhecidos
como religiosos e obedientes às estruturas do Catolicismo. Casar civilmente era
considerado como infringindo essas estruturas mesmo que os participantes não
dispusessem de leitos nupciais ou de qualquer forma tivessem relações não autorizadas
pelos mandamentos religiosos. Não obstante o clamor originado pelo evento o facto
era que o meu pai, naturalmente sisudo e favorecido pela idade, considerava a
rapidez dos desenvolvimentos como não tendo bases sólidas e insistiu que se o
meu irmão e Hilda na verdade se quisessem casar o fariam dessa forma até que mais
tarde se juntassem na América. É que um problema havia: o meu irmão tinha atingido
a idade em que não podia viajar para o estrangeiro sem primeiro cumprir o serviço
militar requerido naquele tempo a todos os jovens portugueses. O mínimo tempo de
serviço era dois anos. Tão depressa Hilda e sua mãe regressaram aos Estados Unidos,
Luís entrou como voluntário para as forças armadas e, em virtude de ter o curso
liceal foi automaticamente designado para treinos especiais e recebido ordem de se
apresentar no quartel de Queluz, em Portugal continental. A partida dele para a
"tropa", como se dizia na altura, foi para mim difícil de aceitar. Não que o Luís
e eu fôssemos altamente dependentes um do outro mas a falta dele afectou-me
severamente talvez por me fazer compreender que a vida mudava e não era sempre
uma continuação da rotina que me cercava. Nos fins de 1955, o meu irmão regressou
para São Miguel, já antecipando a desmobilização militar, a sua ida para América
e o juntar-se com Hilda, a sua esposa "oficial", digamos assim.
Acontecera que anos antes, aí por volta de 1944, o meu pai decidira emigrar para
os Estados Unidos por lá ter grande quantidade de parentes incluindo uma irmã,
a minha tia Beatriz, que em nova decidira explorar a vida do Novo Mundo. Eram esses
os tempos finais da Segunda Grande Guerra Mundial e a América tinha decidido instituir
quotas, limitando o número de imigrantes de cada país que seria permitido entrar.
A Portugal foi apenas concedido um número de 500 pessoas por ano mas, não obstante,
o meu pai inscreveu-se na lista de espera já existente para ser despachada em ordem
cronológica. Doze anos se passaram para que a sua vez chegasse, mas chegou e em Março
de 1956 os meus pais receberam aviso do Consulado Americano que poderiam emigrar.
Foi essa a sua decisão. Em Maio desse ano o meu pai partiu para a América para preparar
as acomodações necessárias para que a minha mãe e eu nos juntássemos a ele mais tarde.
Nesta essa altura eu tinha 18 anos. Afastar-me dos meus amigos e das minhas
actividades musicais era difícil mas nada se comparava com o problema de me afastar
da minha namorada. Separar-me da Maria Filomena foi sem dúvida um dos maiores
sacrifícios a fazer na minha vida de até então. De forma alguma me reconciliava
com o facto de a não ter perto de mim e ainda hoje penso que os meus pais nunca
imaginaram o que eu sofreria em me separar dela. Num vão esforço de atenuar esse
sofrimento Filomena e eu decidimos formalizar o nosso namoro. Em 24 de Junho de
1956 eu pedi-a em casamento. Naquela altura "pedir em casamento" era a maneira de
comunicar às nossas famílias que considerávamos os nossos namoros com seriedade.
Simultaneamente com estes acontecimentos o meu irmão Luís, também tinha preparado
a sua documentação para finalmente se juntar a Hilda e aconteceu que o processo
dele foi despachado por esta mesma altura. A decisão foi tomada de que nós os três,
isto é, a minha mãe, Luís e eu viajaríamos juntos e assim foi que em 26 de Julho
de 1956 partimos na SATA para Santa Maria e de lá para os Estados Unidos com rumo
a Bóston.
Era esse o princípio duma nova vida para todos nós.
Bóston, um dos centros intelectuais mais importantes do Novo Mundo, e berço das
famosas instituições de ensino como a Universidade de Harvard, o Instituto Técnico
de Massachusetts, e outras mais, foi sem dúvida a escolha mais propícia para os
meus interesses musicais. Dessa agremiação intelectual fazia parte o Conservatório
de Música da Nova Inglaterra aonde pouco após a minha chegada aos Estados Unidos
eu fiz requerimento de admissão. Para tal tive que me submeter a uma prova de
entrada e para essa, preparei a Sonata de Léclair No. III em ré maior, para
Violino e Piano. Não uma das peças mais difíceis, sem dúvida, mas ao mesmo tempo
não muito fácil. A minha estratégia era mostrar não só o que poderia executar mas
como executar o que tocaria. Fui bem sucedido. O júri de professores admitiu-me e
considerou-me "aluno especial", uma designação indicativa de maior atenção por
parte da faculdade e consequentemente requerendo maiores propinas. Por seu lado o
meu pai preferia que eu tentasse entrada para Harvard e continuasse os meus estudos
de acordo com a popular "alínea f" do 3? ciclo dos Liceus, ou o "caldeirão", como
era então referida na altura em que lá estava matriculado. Essa dava acesso aos
estudos de medicina nas Universidades em Portugal mas claro, eu estava na América,
inscrito como aluno no Conservatório de Música da Nova Inglaterra, e difícil era
mudar de ideia.
Para pagar as propinas no Conservatório tive que arranjar um emprego e, através
do próprio conservatório, consegui um lugar de servente ao balcão de uma cafetaria
localizada mesmo na baixa de Bóston. O importante era que o meu serviço não me
afectasse as mãos para que pudesse continuar o estudo intenso de violino.
E assim foi. Nesse emprego, comecei a conhecer muitos fregueses "habituées" do
estabelecimento, em especial os de um banco situado mesmo ao lado do lugar onde
trabalhava. Se bem que o meu Inglês fosse ainda um pouco "rusty" (ou enferrujado,
como se diz em Inglês) as conversas variavam da curiosidade dos meus interlocutores
sobre os Açores, desconhecidos pela maior parte deles, à política prevalente
em Portugal na altura, o meu interesse em música e tudo o mais que nos passava
pela mente. Com facilidade estabeleci amizades com um relativo número de pessoas e,
por fim, um dos meus fregueses me perguntou se eu estava interessado em trabalhar
no Banco onde ele trabalhava. De bom grado concordei se bem que um pouco reticente
não fosse o meu ainda fraco Inglês menos do que suficiente para poder desempenhar
um emprego no Banco. Mas feliz pela oportunidade lá fui e, para meu
espanto, colocaram-me numa posição na secção de serviços internacionais. A princípio
tudo me confundia porque nada relacionado com bancos era do meu conhecimento,
mesmo em Portugal, mas graças a um outro colega muito paciente que adoptei como
explicador, tentei aprender o que mais podia. Raymond Cox, Jr., o nome do meu
adoptado tutor, tinha sido aluno do MIT, o Instituto Técnico de Massachusetts,
mas "muito contra a vontade do seu pai", assim dizia ele, tinha desistido do
instituto para trabalhar no Banco. Acontece que o pai dele tinha sido em tempos
presidente do próprio banco e o nome Raymond Cox conhecido nos centros financeiros
de Bóston. Raymond e eu tornámo-nos amigos íntimos e eu por fim sendo o "padrinho"
do seu casamento. Armado com os conhecimentos favorecidos pelo meu amigo o resultado
foi que me começaram a adicionar mais responsabilidades e por fim era responsável
não só pelo meu serviço mas pelo de três mais dos meus colegas. Talvez a novidade
de ser responsável pelo grupo despertou em mim um certo interesse que me fez
matricular no Instituto Bancário Americano só para ter a certeza que podia cumprir
as funções com que me incumbiam.
Do Instituto Bancário Americano transferi para o Colégio Bentley, considerado
como sendo uma das escolas superiores mais preferida nas especialidades de
Contabilidade e Economia. Continuei porém os meus estudos de violino e dei
um recital no Brown Hall do Conservatório. Mas, indiscutivelmente, o bicho
bancário me tinha mordido e, a pouco e pouco, se bem que sempre interessado
em música, o Banco adquiriu prioridade. Por fim, desisti do Conservatório e
dediquei-me à minha nova profissão que sem dúvida tinha maiores garantias para
um futuro do que uma vida nas artes. O meu pai tinha razão nisso.
Com horizontes mais seguros era tempo de casar. Em 15 de Agosto de 1963,
Maria Filomena, a noiva que eu tinha deixado em S. Miguel, deu-me a honra
e boa sorte de casar comigo na Capela de Nossa Senhora do Desterro,
mesmo ao lado do Liceu de Ponta Delgada.
Por essa altura Filomena era professora do ensino primário em Rabo de Peixe. Para nos casarmos tive
que garantir ao Governo Português que tinha meios financeiros suficientes
para a manter. Tenho a certeza que tal não seria necessário hoje em dia mas,
naquele tempo, era o requerimento. Toda essa papelada teve que ser despachada
até que por fim regressámos, já casados, para os Estados Unidos nos princípios
de Outubro de 1963.
Novo casal, nova casa, novas aventuras.
Após chegar à América, Meninha, o nome familiar da minha mulher, decidiu
que para poder manter uma conversação em Inglês o melhor seria praticá-lo
num ambiente totalmente imerso nessa língua. Para isso convenceu meu pai
a arranjar-lhe um emprego na secretaria de provas no banco onde ele próprio
também era empregado, o Shawmut Bank of Bóston. Por fim todos nós trabalhávamos
em bancos e relativamente perto uns dos outros na baixa de Bóston.
Em 1966 os meus pais e nós juntámo-nos na compra de um edifício residencial
de três moradias. O meu pai, que havia sofrido um enfarte cardíaco anos antes,
preferiu mudar-se para o rés-do-chão e evitar o uso de escadas. Meninha e eu
mudámo-nos para a moradia no segundo andar e arrendámos o primeiro.
Com as nossas respectivas vidas mais ou menos definidas as pedras
estavam assim colocadas para um agradável jogo de damas.
No State Street Bank continuei a progredir e, por esta altura era já
Administrador duma secretaria especializada no processo de toda a
variedade de documentação negociável à excepção de cheques. Esses eram
considerados rotina e processados em massa mas outros, como letras, acções,
garantias de crédito e muitos mais, requeriam processos individuais e específicos
ao tipo dos próprios documentos. Essa especificidade causou que eu me envolvesse
num grande número de transacções diferentes requerendo cada vez mais os
conhecimentos necessários para administrar esse expediente. Ao mesmo tempo o
Banco por si também se dirigia num rumo de especialização em tipos de transacções
relacionadas com as Bolsas de Nova Iorque e por fim, dada a minha familiaridade
com esses tipos de transacções, fui incumbido de participar no estabelecimento
duma firma na área de "Wall Street" expressamente criada para esse expediente.
O ano era 1970. Em Agosto a minha mãe sofrera uma trombose que a deixou
parcialmente paralítica e incapacitada de falar. De repente, o nível da alegria
e bem estar que até ali tínhamos gozado em comum tornou-se difícil de manter.
O meu pai, reconhecendo que a minha mãe teria que ter auxílio constante, queria
reformar-se para a poder ajudar mas não tinha a idade mínima necessária.
Faltava-lhe perto dum ano para ser qualificado. A única solução viável foi
Meninha abandonar o seu emprego para poder assistir a minha mãe durante o dia
até que o meu pai regressasse à noite do seu. Por fim, tendo atingido a idade
necessária para a reforma, o meu pai dedicou-se a cuidar da minha mãe e as nossas
respectivas vidas acomodaram-se às realidades que teríamos que enfrentar.
Durante o dia o meu pai tomava conta da minha mãe. À noite, Meninha e eu
descíamos ao andar deles para distrair a minha mãe e dar um pouco de folgo aos
cuidados do meu pai. Dois anos depois, em Dezembro de 1972, a minha mãe foi
novamente atacada por outra trombose que finalmente a fez sucumbir. Foi um período
difícil de enfrentar que, cicatrizado que seja, deixou uma marca saliente ainda
hoje sentida.
O meu pai, que por sua vez se tinha reformado para tomar conta da minha mãe,
sentia agora grande falta dela e da vida a que se dedicara. Regressar ao serviço
no banco de onde se tinha reformado não era viável e, aos 62 anos de idade,
não era muito fácil de conseguir outro emprego que o satisfizesse.
Aconteceu que pouco meses antes do falecimento da minha mãe o Bispo de Brownsville,
Texas, Humberto Medeiros, tinha sido transferido para a diocese de Bóston
substituindo o então presente cardeal que decidira reformar-se. O Bispo Humberto
era oriundo da freguesia dos Arrifes em S. Miguel e assumir a chefia da maior
diocese no nordeste dos Estados Unidos não só era em si caso importante mas,
para a comunidade portuguesa ainda tinha maior significado. Além disso essa
transferência sem dúvida traria consigo a elevação a cardeal o que faria o Bispo
Humberto o português mais notável na América do Norte. E assim aconteceu por
nomeação promulgada pelo Papa Paulo VI com a investidura anunciada para o dia 5
de Março de 1973, apenas 3 meses depois do falecimento da minha mãe. A comunidade
de Bóston e arredores iniciou uma caravana que viajaria a Roma para assistir às
cerimónias da nomeação do novo cardeal e Luís e eu aproveitámos a ocasião para
sugerir ao nosso pai para que tomasse parte na excursão. A princípio essa
possibilidade foi rejeitada mas por fim prevalecemos e ele decidiu inscrever-se
no grupo. A nossa ideia era achar maneira de o distrair e sucedemos neste caso.
Em Roma o meu pai participou em várias cerimónias e recepções de homenagem ao
novo Cardeal Medeiros e toda essa actividade não só concorreu para atenuar o
sentimento de perca pelo falecimento da minha mãe mas também despertar o
interesse de tornar a viajar. No ano seguinte, 1974, o meu pai
viajou por vários países da Europa e, de regresso, parou nos Açores com ideia de
lá estar umas poucas semanas especialmente visitando a sua terra natal, Santa Maria.
Essas poucas semanas convenceram-no a mudar-se
novamente para os Açores e, depois de um breve retorno aos Estados Unidos para
por as coisas em ordem ele decidiu estabelecer-se em S. Miguel. Várias visitas
mais ou menos longas e algumas até mesmo inesperadas nos foram feitas por ele.
Numa dessas nós recebemos um telefona para o ir buscar ao aeroporto de Nova
Iorque porque queria consultar o seu médico em Bóston. Poucos dias depois,
tendo feito as marcações para a consulta, eu tornei a leva-lo ao aeroporto
com rumo a Bóston. Lá seria o meu irmão a tomar conta de o levar ao médico.
Nessa consulta o meu pai decidiu fazer uma operação que lhe aliviasse problemas
de circulação numa perna. A convalescença requeria visitas semanais ao médico
durante umas semanas e por fim a rotina foi estabelecida dele ir a Bóston nas
Quintas-feiras para que o meu irmão o levasse ao médico na Sexta e, após o
exame médico, tornar a leva-lo ao aeroporto com rumo ao de New Jersey para que
eu o buscasse à noite em saída do meu emprego. Essa intervenção cirúrgica foi
mais ou menos bem sucedida se bem que o meu pai esperasse ainda melhores resultados.
Não obstante, ele regressou a S. Miguel e lá morou por mais alguns anos até que a
senhora dona da pensão que habitava sugeriu ao meu primo Eduardo que talvez fosse
boa ideia ele regressar aos Estados Unidos.
Luís deslocou-se a S. Miguel para o
acompanhar na viajem de regresso e, se bem que a princípio ele pensasse em se
estabelecer em Massachusetts, por fim resolveu mudar-se para New Jersey e viver
na nossa casa.
Cá viveu connosco, onde sofreu 3 enfartes cardíacos o terceiro
dos quais lhe afectou um pouco o cérebro. Por essa altura os médicos recomendaram
que ele fosse transferido para uma casa de convalescença onde faleceu em 9 de
Janeiro de 1995, exactamente no quinquagésimo aniversário do falecimento do seu pai,
meu avô Agostinho de Andrade Chaves, cuja fotografia, aqui incluida à esquerda,
o mostra numa altura em que pilotava um barco na Califórnia.
Depois do falecimento da minha mãe em 1972, Meninha e eu decidimos comprar casa
nova e mudarmos para algures nos arredores de Bóston. Encontrámos um lugar acabado
de construir na Cidade de Arlington, adjacente a Cambridge, e para lá nos mudámos
em 1973. Era uma casa relativamente pequena mas bem situada. Pela primeira vez
nas nossas vidas na América morávamos num lugar totalmente nosso e não em andares
ou apartamentos de edifícios multi-residenciais. O facto da casa ser nova e ainda
com os cheiros de recém construída ajudou-nos a reorientar as nossas vidas e tornar
a pensar no futuro.
Pouco depois de nos mudarmos para a nova casa eu resolvi associar-me à Orquestra
Sinfónica de Arlington, constituída por um grupo de amadores não só da cidade
mas de outros arredores até mesmo de Bóston. Lá, conheci grande número de colegas
entre eles Michel Perrault com quem estabeleci uma amizade mais próxima provavelmente,
em início, derivada do facto de nos sentarmos na mesma secção e ao lado um do outro.
Michel, tal como eu, era apreciador de música de câmara e o resultado foi nós nos
juntarmo-nos com frequência nas nossas casas para, a princípio, tocarmos duetos.
Com relativa brevidade os duetos deram lugar a trios, quartetos e por fim ainda
maiores a grupos. Meninha passava a maior parte do tempo ouvindo a música que
executávamos mas, quando calculava que estávamos perto de terminar, desviava-se
para preparar uns "comes-e-bebes" a que, na sua opinião nós os músicos eram merecedores.
Eram serões agradáveis que se tornariam quase rituais nos fins de semana e adquirindo
uma certa fama entre o nosso círculo de conhecidos. A música planeada para o próximo
encontro determinava mais ou menos a medida da festa que o seguiria. Quartetos
eram em regra o normal mas, se uma maior festa era desejada, havia sempre o octeto
para cordas de Mendelssohn em Mi bemol maior. Essa era uma peça relativamente difícil
que, se nós pelo menos conseguíssemos chegar ao fim todos juntos era considerado o
suficiente para nos qualificar para a festa antecipada. Frequentemente os participantes
traziam companheiros. Com um octeto, tínhamos pelo menos oito a tocar e ito espectadores.
Era o bastante para garantir o sucesso do serão.
Não obstante a nossa classificação de amadores Michel e eu decidimos formar um grupo
mais formal que se dedicasse a música de câmara até mesmo para dar concertos em
festividades sociais nas comunidades em que morávamos. Esse interesse deu origem
ao estabelecimento da Orquestra de Câmara de Mystic Valley, Mystic Valley sendo
a designação geral atribuída à área de subúrbios onde vivíamos. Três anos depois
fui transferido para Nova Iorque e deixei esse grupo, assim como todos os nossos
outros amigos, o que foi causa de consternação e grande parte da razão porque nos
sentimos como que emigrando uma segunda vez. A Mystic Valley Chamber Orchestra
continuou a desenvolver, adoptou o nome de
New England Philharmonic
e é hoje considerada um dos grandes grupos musicais da área da Nova Inglaterra
patrocinado pela Universide Simmons.
O que causaria a minha transferência para Nova Iorque era o meu envolvimento com
a sucursal cuja formação eu tinha compartilhado em Wall Street, e com a qual
mantinha contacto directo e frequente. Esta continuara a desenvolver-se e atingindo
cada vez mais um nível significativo para o Grupo do Banco State Street.
Esse desenvolvimento atingia níveis que requeriam administração especializada.
Em 1980 o conselho executivo decidiu convidar-me para me transferir para Nova
Iorque na posição de presidente da firma e com instruções de a converter num banco
em si própria. E assim foi que a State Street Corporation of New York foi incorporada
como State Street Bank of New York, um banco especializado em transacções originadas
nas bolsas de Nova Iorque e eu nomeado o Presidente desse banco.
Meninha e eu mudámo-nos para a área de Nova Iorque e, seguindo os conselhos de
colegas conhecedores da área, radicámo-nos em Summit, New Jersey, um arredor com
acesso directo e frequente de comboio à área de Wall Street. Depois de 25 anos de
residência em Bóston, a mudança para New York foi quase como que uma segunda emigração
só que, pelo menos desta vez, não teríamos problemas de linguagem. Mas tudo era
estranho e difícil de aceitar em princípio. Por esta altura, os negócios bancários
continuavam a desenvolver-se e eu fui novamente incumbido de participar no
estabelecimento duma firma em Londres semelhante à de Nova Iorque. Tive que me
deslocar à Inglaterra em preparação para o estabelecimento dessa nova firma e,
já agora, resolvemos que Meninha me acompanhasse na viagem e de lá tirarmos uns
dias de férias. De regresso passámos pelos Açores a visitar os nossos parentes
em S. Miguel.
Em Ponta Delgada tínhamos vários parentescos entre os quais Teresa e Claúdio Ramos
pela parte de Meninha e Maria do Carmo e Eduardo Franco pela minha parte. As nossas
relações com ambas as famílias eram chegadas e passar tempo com eles era na verdade
um grande prazer. E assim foi que, visitando Maria do Carmo e Eduardo encontrámos
a filha mais velha deles, a Maria Auxiliadora, ou Cilinha, como era familiarmente
conhecida. A última vez que a tínhamos visto, tinha sido para celebrar o seu nono
aniversário natalício. Agora era já uma jovem, falando Inglês fluentemente, e
preparando-se para completar o seu curso Liceal. Tudo indicava que era uma altura
ideal para decisões escolásticas e sugerimos que ela contemplasse a possibilidade
de estudar nos Estados Unidos. Para nosso grande prazer ela concordou e pouco tempo
mais tarde visitou-nos na América com os pais para ter melhor ideia de como decidir.
Ter os nossos primos na nossa casa em Summit durante um mês foi motivo de enorme prazer.
Eu próprio tirei férias e dessa maneira tivemos o tempo e oportunidade de viajar um pouco
não só dentro dos Estados Unidos mas também ao Canadá onde o meu primo Eduardo por sua
vez tinha uma prima que não tinha visto em alguma temporada.
Cilinha, vista aqui à direita, decidiu vir estudar para a América, matriculou-se num
colégio local onde tirou o bacharelato e depois na Universidade Kean onde foi mestre
em educação infantil. Viveu connosco durante onze anos não só enquanto estudou mas
depois mesmo até perto de se casar. A sua presença foi sempre motivo de agrado e
enchia a nossa casa com alegria.
A popularidade do tipo de Banco que State Street tinha iniciado em Nova Iorque
começou a ser notada por outros e por fim vários grupos bancários também decidiram
instituir as suas sucursais exclusivas. Entre eles contava-se o First National
Bank of Boston, bem conhecido da comunidade Portuguesa em virtude da sua presença
preponderante no Brasil e outros países da América do Sul. Em 1987, eu fui contactado
pelo First National indagando sobre o meu possível interesse de me associar com ele,
administrar a sua sucursal e converte-la numa instituição bancária tal como tinha
feito no State Street. Aceitei a proposta e associei-me ao First National Bank
onde fui nomeado Presidente e Chefe Executivo do BancBoston Trust Company of New York.
A década dos 90's foi notável pelos grandes movimentos entre firmas financeiras que
se combinavam com o fim de desenvolver maior capital e, consequentemente, mais
facilidade para maiores empréstimos. O Grupo Bank of Boston associou-se com o Bank
of América e praticamente deixou de existir. Consequentemente a decisão foi tomada
de que a sucursal de New York seria encerrada em 31 de Dezembro de 1996 e eu,
não antevendo outros desenvolvimentos, planeei reformar-me. Acontecia porém que
os tipos de transacções processadas na sucursal que eu chefiava eram de tal maneira
únicas que me fizeram uma proposta em que o Banco subsidiaria uma firma que eu
montasse exclusiva para esse expediente. E assim foi que em 2 de Janeiro de 1997,
eu continuei a chefiar uma firma, agora minha, com o mesmo pessoal, no mesmo lugar,
tudo o mesmo só que todas as referências a BancBoston tinham sido pintadas de fresco
com o nome que Meninha tido escolhido para a minha companhia: Securities Transfer
And Reporting Services. Concordei no nome porque o acrónimo desse título se torna
em STARS e calculei que, a firma seria conhecida por esse nome em vez do registado
oficial. Assim aconteceu.
Pouco depois de estabelecer a nova firma, em Julho de 1997, foi-me diagnosticado
um cancro do cólon. Operado de emergência atravessei os seguintes seis meses em
quimioterapia. Tive reacções um pouco violentas no processo e por isso fui
hospitalizado duas vezes. Não obstante, os meus empregados continuaram a manter
a firma e, graças às ligações directas de computadores com o meu escritório,
conseguimos navegar a situação até mesmo sem que os nossos clientes principais se
tivessem apercebido da severidade do que tinha acontecido. Recordando essa época
ainda me admiro de como a consegui manejar. Mas tudo passou.
Os contractos de arrendamento previamente estabelecidos com o Banco de Bóston tinham
caducado e novos arranjos tiveram que ser feitos. STARS estava agora localizada no
rés-do-chão de um edifício situado a menos de 500 metros do World Trade Center.
Em 11 de Setembro de 2001, pouco depois de nos prepararmos para a actividade diária
fomos alertados que um avião tinha batido numa das torres. A princípio julgávamos
que era simplesmente um acidente mas, depois, ao ouvir o estrondo do segundo impacte
na outra torre calculámos o que estava acontecendo e pensámos arreliados sobre o
que mais poderia acontecer. Imediatamente começámos a colocar todos os valores
documentários nos cofres-fortes da firma e avisámos o pessoal para se preparar e
despedir para o dia. STARS era associada com a Bolsa de Nova Iorque e por tal não
podia encerrar a sua actividade sem autorização desta. A Bolsa não fechou imediatamente
e nós da mesma maneira tivemos que manter o escritório aberto se bem que com o
mínimo de pessoal absolutamente necessário. Pouco depois as torres caíram. Os estrondos,
e o fumo acre que permeava tudo à volta eram em si altamente desconfortáveis mas o
pior foi a avalanche de cinza que se amontoou por toda a parte a ponto de dificular
a abertura de portas para a rua. Foram momentos difíceis de recordar. Durante uma
semana a firma permaneceu encerrada de acordo com a Bolsa.
STARS, fundada em 1997, continuou em actividade até 2005, altura em que o tipo de
transacções por ela processada começou a diminuir e, por fim, extinguiu-se. Era
tempo de me reformar, e foi essa a nossa decisão.
Tirando vantagem da nova situação Meninha e eu decidimos ir à Suiça e assistir ao
Festival de Música em Lucena. Dois anos antes tínhamos ido a Berlim e Praga, também
participando em viagens com motivos musicais. Sabíamos o que esperar.
O nosso interesse por actividades musicais nunca esvaneceu. A proximidade de Nova
Iorque proporciona-nos acesso fácil a vários centros culturais como
a Ópera Metropolitana, Carnegie Hall, David Geffen Hall e outros. Essa proximidade
é responsável por nos continuarmos a radicar em Summit, New Jersey e consideramo-nos
felizes pela boa sorte de viver onde vivemos. Estamos cercados por amigos com
quem temos relações activas e altamente agradáveis e associarmo-nos com eles é sempre
motivo de alegria. Claro que não somos imunes à passagem dos anos mas fazemos o
possível por apreciar os momentos que nos deparam.
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email: gerry@dechaves.com
Abril, 2011
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