Historiemos consultando os documentos que se relacionam directamente com o acontecimento
que neste mês e ano jubilosamente se comemora.
Impunha-se, dada a população da Ilha de S. Miguel ser ao tempo já bastante elevada -
andava por volta de 70 mil almas - a criação de uma escola oficial de estudos secundários.
Para se poder atingir tal objectivo houve quem, nesse sentido, se tivesse avistado em 1810,
na Corte do Rio de Janeiro, com o Ministro-Secretário de Estado, Conde das Galveias, a-fim de
lhe expor "os perniciosos resultados de falta de conhecimentos em uma Ilha assás populosa,
tendo muitas famílias ilustres, e sendo obrigados os pais, que querem, e podem dispensar
maiores somas na educação de seus filhos, a manda-los fora da Ilha"; e, seguidamente,
se tivesse dirigido à pessoa do Duque de Bragança, D. Pedro, apresentando-lhe "o Plano da criação
de um Liceu de Belas Letras, Colégio de educação pública na Cidade de Ponta Delgada, na
Ilha de S. Miguel", onde poderia "aprender os princípios de Literatura a mocidade das
Ilhas dos Açores, da mesma sorte que aprende na Cidade de Angra, na Ilha Terceira, os
Princípios Matemáticos e militares; podendo sair destas duas academias com todos os preparatórios
necessários para se formarem na Universidade de Coimbra, serem úteis a si, a seu País,
à sua Nação, e ao seu Monarca".
Mais tarde, em 25 de Janeiro de 1823, a Câmara de Ponta Delgada submetia à aprovação do
Soberano "um projecto de Plano de Geral Educação para a Ilha de S. Miguel" ao mesmo tempo que
solicitava do mesmo Monarca a aprovação da criação de um colégio de ensino médio. Dois anos
depois, em 10 de Setembro de 1825 a referida Câmara, reconhecendo a necessidade de se fundar
uma escola de ensino complementar encarregava o Desenbargador Vicente José Ferreira Cardoso
da Costa de levar às mãos do Rei-Imperador "a cópia de um plano para o estabelecimento de
um colégio de educação na Ilha"; e em 26 de Fevereiro de 1827 a Câmara voltava a insistir
no assunto, dirigindo uma nova Representação ao Duque de Bragança no sentido de serem imediatamente
criadas nesta Ilha aulas públicas.
Achamos dignos de registo este passo textual (só se actualizou a ortografia, como aliás tivemos de o
fazer em outras transcrições) da aludida Representação.
Ora, repare-se: "Em todos os tempos, e em todas a cidades, foi sempre a Ilustração e a Sabedoria
dos homens o carácter distintivo o mais nobre e pomposo, que elevou as nações à maior grandeza;
e foi sempre entre as Nações mais cultas, que floresceram as Artes e o Comércio. Forem elas
sempre vitoriosas na Guerra com forças desiguais, e na Paz opulentas e ricas de forma
que não é a extensão do terreno que faz a sua grandeza, nem tão pouco a sua População se
a rude ignorância e a brutalidade se faz geral, subsiste por acaso a grande Nação neste Estado,
e por qualquer acidente está arriscada, e incerta, e vacilante a sua existência: a história
assim no-lo atesta e certifica.
É, pois, e deve ser o primeiro cuidado do Sábio Legislador que quer conduzir à Grandeza o Povo,
e a Nação confiada à sua direcção, promover as ciências entre ela; porque adquiridas e generalizadas
entre os homens será uma consequência à sua prosperidade: o homem Sábio fica mais pronto a exercitar
com proveito a sua indústria em todos os ramos de comércio, e daqui resultará por uma necessária
consequência a opulência da Nação, a sua População e sua felicidade.
O homem Sábio é mais capaz de dirigir as suas Acções com acerto, firmeza pela estrada da virtude;
e com o seu exemplo promove-la entre os outros homens, e generalizada ela, todos conspiram com
forças reunidas para o fim comum de conseguir a sua ventura, e com ela será feliz o Soberano
Imperador de tais Povos, e de tal Nação", (1).
E neste mesmo tom eloquente prossegue a Exposição acabando a Câmara Municipal de Ponta Delgada por
fazer ao Governo de Sua Majestade Imperial a urgência na fundação de um "Seminário" de estudos gerais.
Finalmente, atendendo aos Relatórios elaborados pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino,
Marquês de Palmela, D. Pedro, em nome de sua Filha D. Maria da Glória decreta "a liberdade do ensino" nas
Ilhas, e determina que sejam criadas "aulas públicas em S. Miguel e Santa Maria". Estava dado o primeiro
passo com os dois decretos do Duque de Bragança, datados ambos de 1832.
Mas, pròpriamente quanto à fundação de liceus, teve-se que esperar mais algum tempo ou seja até à publicação
da Reforma de Passos Manuel.
Com efeito, pelo decreto de 17 de Novembro de 1836, o Ministro de D. Maria II criava "liceus nacionais em todas
as capitais do distrito".
Era esta "a primeira tentativa séria", que embora incompleta, "visava no entanto preencher as lacunas da reforma
pombalina do ensino secundário"(2).
Vicissitudes de ordem política e mesmo financeira impediram que o Decreto de 1836 fosse imediatamente cumprido;
além de que a Reforma de Passos Manuel era mais tarde substituída por uma outra: a 20 de Setembro de 1844.
A nova Reforma, apesar de ter modificado algumas bases da anterior, mantinha contudo a criação obrigatória de Liceus
nas capitais dos Distritos do Continente português e das Ilhas adjacentes.
Só, porém, em 1852 - decorre este ano um século - em que o mencionado Decreto veio beneficiar o Distrito de Ponta
Delgada, devendo-se essa iniciativa ao então Governador Civil, Dr. Félix Borges de Medeiros, que em Edital datado
de 21 de Fevereiro do dito ano da Graça, fazia saber o seguinte: - "Sendo um dos primeiros deveres da autoridade
promover os interesses dos seus administrados, e sendo indubitável que a instrução pública está inteiramente ligada
ao progresso moral e intelectual de qualquer povo, e conseguintemente aos interesses do mesmo povo - baseado no Art.
234 do Código Administrativo faço intimar pelo presente Edital o Reverendo João José d'Amaral, para que na qualidade
de Comissário dos Estudos deste Distrito mercê que lhe foi conferida por decreto de 2 de Setembro do ano próximo
findo passo sem a menor delonga a tratar da organização definitiva do Liceu desta cidade, convocando os respectivos
professores, formando o Conselho do mesmo Liceu e procedendo à abertura das Matrículas, tudo em conformidade do
decreto de 20 de Setembro de 1844 - ficando desde já habilitado para pedir a este governo civil todos os
esclarecimentos necessários pendentes ao objecto proposto, esperando do zelo, inteligência, e madureza do referido
Comissário, que se haverá no exercício desta missão com o esmero que lhe é próprio e que te tanta honra lhe faz", etc…
Dois dias depois, em 23 - faz este mês cem anos! - o Comissário dos Estudos deste Distrito dava cumprimento ao
conteúdo do Edital. Mas o melhor é transcrever o que reza a respectiva Acta: "Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo mil oitocentos e cincoenta e dois, aos vinte e três de Fevereiro, reunidos por prévia convocação do Revendo
Comissário dos Estudos deste Distrito, em uma das salas do convento dos extintos Gracianos desta cidade de Ponta Delgada,
os professores abaixo nomeados, dando-se assim cumprimento à intimação feita ao referido Comissário por o Excelentíssimo
Governador Civil do mesmo Distrito, o Dr. Félix Borges de Medeiros, em seu edital de vinte e um do corrente Infra
transcrito para o fim de tratar-se quanto antes da organização definitiva do Liceu desta dita cidade, ficou efectivamente
organizado o mencionado Liceu, sendo Membros do Conselho respectivo o supra referido Comissário e Reitor do Liceu, João
José d'Amaral, Professor Jubilado das Cadeiras de Filosofia e Rectórica; e vogais o Dr. João Anselmo da Cruz Pimentel Choque,
Professor da Cadeira de Matemática; Luís Filipe Leite, Professor das Cadeiras das Línguas Francesa e Inglesa; Joaquim Manuel
Fernandes Braga, Professor da Cadeira de Filosofia Racional e Moral, e Princípios de Direitos Natural; e António Augusto da Mota Frazão, Professor Substituto das Cadeiras de Filosofia e Rectórica, faltando porém por impossibilidade que alegou, Caetano António de Melo, Professor de Latim e Língua Francesa".
E a Acta da memorável sessão continua: "Em seguida procedeu-se à nomeação de Secretário do Conselho, e saiu eleito por
pluralidade de votos, tomados por escrutínio secreto o mencionado (mensiado, sic) professor Substituto António Augusto
da Motta Frazão. Depois do que deliberou o Conselho: Primo que ao Conselho Superior de Instrução Pública em Coimbra se
participasse a organização do Liceu, e formação Conselho respectivo. Secundo que ao Governador Civil deste Distrito se
fizesse a mesma participação. Tercio que deste se requisitasse a mobília e utensílios necessários para a Secretaria do
Liceu. Quarto que com a brevidade possível se tratasse do Regulamento interno do mesmo Liceu. Quinto que, quanto às matrículas
de que fala o referido Edital, se abrissem estas sem a exigência das propinas constantes dos artigos 67 e 68 da Lei de 20
de Setembro de 1844, visto acharmo-nos em mais de meio ano lectivo e a dita lei as exigir no princípio do ano; devendo
contudo os alunos pagar as que por lei pertencem ao encerramento das mesmas Matrículas", etc.
Cumpre-nos a propósito, informar quem nos ler que também era permitido "aos alunos de fora da cidade residirem nas
dependências que lhes foram designadas, no dito convento", (4).
Esta oficialmente criado o Liceu de Ponta Delgada, e enfim satisfeita a grande aspiração das populações das Ilhas de S. Miguel
e Santa Maria, funcionando as aulas nesse mesmo Convento até ao ano de 1921; e daí por diante no actual edifício, o Palácio
dos Condes da Fonte Bela, devendo-se sua aquisição ao Reitor desse século, Sr. Dr. Jeremias da Costa, que em hora de feliz
inspiração o escolheu para Liceu.
Como é de supor a princípio o Liceu de Ponta Delgada ministrava apenas o Curso Geral. Só muito mais tarde, pelo decreto de
29 de Agosto de 1901, ou melhor, desse ano, de 9 de Setembro é que, elevado a Liceu Central, passou a ter sete anos, com os
Cursos complementares, separando-se as Letras das Ciências, (5).
Cedo se fez sentir a sua acção pedagogia e intelectual; depressa se verificou quão era a sua criação num meio já tão
progressivo e de gentes tão desejosas de saber.
Na verdade, até ao momento o Liceu de Ponta Delgada tem vindo sendo não só a primeira escola de ensino no nosso Distrito como
também um centro de irradiação espiritual, em sucessivas gerações de mestres ilustres e de alunos que, nas letras, nas artes
e nas ciências, em suma em todos os ramos da actividade humana, se têm distinguido notavelmente.
Pode mesmo dizer-se que a história da Ilha de S. Miguel, quanto ao seu índice mental, tem corrido nos últimos cem anos,
paralela e dependente da acção cultural do Liceu desta cidade.
E porque é próprio dos homens evocar os nomes eminentes que porventura tenham na sua ascendência, pode o Liceu Nacional de
Ponta Delgada justamente orgulhar-se de ter tido por seu aluno Teófilo Braga e aprovado no seu exame de instrução primária
Antero de Quental.
Mas há mais nomes de antigos alunos deste Liceu que, conquanto não tenham a projecção universal de Antero e mesmo de Teófilo,
têm dado lustre à casa onde se instruíram e se educaram; e a estes nomes devemos - é de toda a justiça - associar os daqueles
que os prepararam para a vida - os seus mestres.
E muito embora, por falta de espaço, nos vejamos forçados a não nomear, pelo menos de momento, os nomes de uns e outros,
entendemos ser do nosso dever evoca-los a todos, espiritualmente, em rendida homenagem pelo que têm contribuído, dentro
das suas tendências vocacionais, para o progresso da terra açoriana e valorização do Liceu de Ponta Delgada, cujo primeiro
século de existência ora jubilosamente se festeja. E merecidamente, visto que este Liceu é já portador de uma brilhantíssima
folha de serviços inteiramente prestados à causa da cultura regional e pátria!
Notas
(1) Vid. Anuário do Liceu Nacional de Ponta Delgada para o ano lectivo, de 1890 a 1891, "seguido de alguns documentos para a
História da Instrução Pública em S. Miguel", organizado por Eugénio Pacheco.
(2) Vid. História de Portugal, "ed. Barcelos; pág. 665 do vol. VII).
(3) Cit. in - Anuário do Liceu Nacional de Ponta Delgada, etc.
(4) Vid. Urbano de Mendonça Dias, História da Instrução nos Açores, pág. 133 e seg.; e João H. Anglin, Leituras para os
meus alunos, pág. 53 a 73.
(5) Era, nessa altura, Presidente do Conselho de Ministros o eminente estadista micaelense Conselheiro Hintze Ribeiro.
|